segunda-feira, 2 de junho de 2008

Rompendo a conspiração do silêncio

Durante a pesquisa, ela teve de trocar três vezes o número de seu telefone, por causa dos grampos (escuta clandestina) e das intimidações. Se o fato de ser filha de um oficial das Forças Armadas contribuiu, como ela própria reconhece, para que tivesse acesso a documentos inéditos guardados por militares há mais de trinta anos, também provocou, entre oficiais saudosos da linha-dura, desconfiança, animosidade e até ameaça explícita. Por isso, resume, teve acesso aos relatórios secretos, mas não, de forma irrestrita, aos militares.
“Houve general que, procurado, disse que não falava com ‘esse tipo de gente’. Lembraram-me que, em outro momento, eu jamais faria esse tipo de pesquisa impunemente. Também não entendiam como eu, filha de um oficial, podia estar a favor deles, dos comunistas,”, disse-me ontem a jornalista e pesquisadora Taís Morais, que está em Belém para lançar, exatamente um mês depois de ter sido lançado em Brasília, onde mora, o livro Operação Araguaia: Os Arquivos Secretos da Guerrilha (Geração Editorial, 656 páginas, R$ 59), escrito em co-autoria com o jornalista Eumano Silva, do Correio Braziliense, que em 2003 ganhou o Prêmio Esso Regional por reportagens feitas com base nos primeiros documentos sobre a guerrilha que a pesquisadora repassou ao jornal.
As dificuldades enfrentadas por Taís revelam o quanto a Guerrilha do Araguaia – travada no coração das trevas em versão amazônica, em que milhares de soldados, comandados por generais experientes, armados de metralhadoras e cobertura de helicópteros, levaram três anos para liquidar o foco guerrilheiro organizado pelo Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, reunindo um grupo de menos de 100 combatentes, a maioria jovem, despreparada e armada com mosquetões e revólveres velhos – permanece como um assunto tabu entre os militares, mais de trinta anos depois de derrotada a guerrilha, em 1974.
O pacto de silêncio guardado por setores da repressão se deve ao fato de que as Forças Armadas, diz Taís, negam-se a assumir a responsabilidade pela violência cometida no Araguaia, com a prática de tortura contra esquerdistas e camponeses da região. “Ocorreram desmandos entre os militares, divergências entre os comandos, que geraram mortes, barbaridades.”
Essa (má) memória, observa Taís, permanece latente no epicentro do conflito, principalmente em torno de uma figura central do episódio, Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió. Símbolo da repressão contra o movimento armado do PCdoB (usava o codinome Doutor Luchini), Curió se tornou, depois da guerrilha, como representante do governo militar, o homem mais temido na área, impondo a lei do silêncio para os moradores em relação ao período de extermínio dos militantes do PCdoB. Fundou a cidade de Curionópolis e elegeu-se prefeito três vezes. Em 2004, ganhou mais um mandato. Das acusações de abuso no combate à guerrilha, argumenta que cumpria ordens superiores.
Mas o silêncio não é exclusividade dos militares. A esquerda está longe de ser loquaz sobre suas alianças e traições ou justiçamentos feitos pelos guerrilheiros, que fuzilaram moradores da região acusados de colaboração com o Exército. Por sua vez, nos desvãos desse mútuo mutismo, ainda há 58 desaparecidos à espera de identificação.
Os documentos revelados, a maior parte inédita, constituem, confirma Taís, “a espinha dorsal do livro”, sustentação da narrativa, que se lê com a fluência de um (bom) romance . Três dos sete anos da pesquisa foram consumidos na coleta de entrevistas e depoimentos de ex-guerrilheiros, parentes, militares e camponeses do Araguaia, a parte mais frágil que, inesperadamente, viu-se no centro de um palco, o da guerrilha.
Entre as principais revelações, estão as estratégias de operações planejadas pelas Forças Armadas, os nomes de seus comandantes, relação de mortos e feridos dos militares, depoimentos dos guerrilheiros presos, revelações obre traições feitas por militantes do PCdoB e documentos revelando conflitos internos sobre a continuidade da guerrilha. É também revelada a forma de como a repressão tomou conhecimento da reunião do Comitê Central do partido no bairro da Lapa, em São Paulo, quando foram presos seus principais dirigentes e fuzilados dois deles, Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Foram traídos por um membro do próprio Comitê, que os denunciou aos militares e continua vivo. Seu nome: Manoel Jover Telles.
Taís Morais autografa o livro logo mais, a partir das 18h30, no Núcleo de Arte da UFPA, na Praça da República.


eliaspintopa@uol.com.br