As Forças Armadas sempre afirmaram que os arquivos da Guerrilha do Araguaia, comandada pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB, nos anos 70, não existem e que, se existiram algum dia, foram destruídos. Não é verdade. A partir de documentos secretos recolhidos pela pesquisadora Taís Morais, ao longo de sete anos, junto a militares – que os guardaram por cerca de 30 anos – ela própria e o jornalista Eumano Silva escreveram o livro “Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha”, que foi lançado oficialmente dia 13 de abril, em Brasília, com a presença surpreendente da ex-guerrilheira Regilena Carvalho (cujo companheiro, Jaime Petit da Silva, morreu em combate, assim como os dois irmãos dele, Lucio e Maria Lúcia), Luzia Reis, também ex combatente do PCdoB e do ex-militar Nélio da Mata Rezende, comandante da primeira expedição de informação, realizada pela 8ª Região Militar, no Araguaia. Numa das missões de Nélio, houve a primeira baixa dos militares na guerrilha – o cabo Odílio da Cruz Rosa, fuzilado pelos guerrilheiros.
O livro (Geração Editorial, 656 páginas, R$ 59,00), segundo o editor Luiz Fernando Emediato – que apoiou o projeto de coletar entrevistas e depoimentos de ex-guerrilheiros sobreviventes, parentes e militares, num trabalho que durou quase três anos – é “um magistral esforço de pesquisa e jornalismo investigativo entre civis e militares”. Ele completa, agora com registros oficiais, lacunas que as investigações jornalísticas do passado deixaram em branco”. O editor decidiu colocar todos os documentos, na íntegra, no site da editora, na Internet (www.geracaobooks.com.br), para que possam ser consultados por qualquer pessoa. Isso acontecerá no final do mês de abril e para ter acesso, os internautas precisão se cadastrar e usar uma senha, impressa na orelha do livro.
As principais revelações: estratégias de operações planejadas pelas Forças Armadas, os nomes de seus comandantes, relatórios sobre os resultados, relação de mortos e feridos dos militares, depoimentos de guerrilheiros presos, a confirmação de que foi usado o desfolhante “napalm” na floresta amazônica (o mesmo usado pelos americanos no Vietnã), revelações sobre traições feitas por militantes do PCdoB, e documentos deste partido revelando conflitos internos sobre a continuidade da guerrilha e a insistência de seus comandantes para não interromperem a luta armada contra a ditadura, mesmo com praticamente todos os guerrilheiros mortos. O comandante militar do PCdoB, Angelo Arroyo, queria recrutar mais jovens, nas universidades, para continuar a guerra. Foi fuzilado antes de conseguir isso.
“Operação Araguaia” revela segredos guardados por mais de três décadas: nomes de militares mortos e feridos na guerra, fotografias inéditas feitas por militares que combateram na região – na maior movimentação de tropas brasileiras desde a II Guerra Mundial – e 14 depoimentos de camponeses e guerrilheiros (dois deles do atual presidente do PT e ex-militante do PCdoB, José Genoino Neto).
O livro revela, além de uma enorme quantidade de documentos do PCdoB apreendidos pelos militares, a forma – só agora revelada – de como a repressão tomou conhecimento da reunião do Comitê Central do partido no bairro da Lapa, em São Paulo, quando foram presos os principais dirigentes e fuzilados dois deles, Pedro Pomar e Angelo Arroyo. Eles foram traídos por um membro do próprio Comitê Central, que os denunciou para os militares e continua vivo, em algum lugar do Brasil. Só agora o nome dele – Manoel Jover Telles – é revelado.
QUASE UM ROMANCE
– Este livro – prossegue o editor – pode ser lido como um romance terrível, trágico, pois ele conta uma história sangrenta, uma verdadeira chaga na história do Brasil, tanto pela ingenuidade e ousadia dos guerrilheiros, que acreditavam ser possível uma revolução popular a partir da selva amazônica (como Che Guevara tentou no Congo e na Bolívia) quanto pela violência da repressão militar. O PCdoB mandou para a selva gente, a maioria jovens, despreparada e armada com mosquetões e revólveres velhos.
Eram menos de 100 e não tinham o que fazer diante das metralhadoras, helicópteros e até aviões dos militares, que eram mais de 7 mil. Foi um massacre.
– Serei para sempre grato a todos que colaboraram na execução deste trabalho – afirma o jornalista Eumano Silva, que em 2003 ganhou um Prêmio Esso de Jornalismo por suas reportagens, no Correio Braziliense, feitas com base nos documentos obtidos por Taís Morais. – Em graus diferentes, mais de uma centena de pessoas se dispôs a contribuir com a reconstituição da história da Guerrilha do Araguaia. Ex-guerrilheiros, militares da ativa e da reserva, moradores do Araguaia e familiares dos envolvidos nos combates aceitaram remexer em feridas de mais de três décadas em nome da relevância histórica do episódio.
Para Taís Morais – que é filha de um oficial das Forças Armadas – o trabalho de pesquisa e contato com os entrevistados, desde militares radicais até integrantes do PCdoB lhe permitiram ver que “sempre há uma linha tênue que separa duas visões, mas que torna possível uma análise sem comprometimento sobre o assunto”. Na visão da pesquisadora, “não é possível apagar o passado e reconstruir parte desta história é uma imensa gratidão e um passo inicial para que novos registros venham a público. Esse fato não pode ser escamoteado e manipulado por poucos que não desejam esclarecer aquele episódio”.
Muitos dos entrevistados – como guerrilheiros sobreviventes e parentes de guerrilheiros mortos – desconfiaram, inicialmente, das intenções dos autores, mas pouco a pouco foram cedendo, as revelações surgiram. Militares se recusaram a falar do assunto – alguns chegaram a ameaçar Taís, mas outros, encorajados, não só aceitaram falar, como entregaram para ela documentos e fotos guardados por três décadas.
O resultado foi um livro corajoso e isento: ele não toma partido nem mesmo quando relata as torturas brutais que vitimaram não só guerrilheiros como também moradores inocentes.Ou quando revela justiçamentos feitos pelos guerrilheiros, que fuzilaram moradores da região acusados de colaboração com os militares. O leitor deverá julgar, ele próprio, a selvageria brutalmente explícita pela frieza documental do relato.
A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO
A Guerrilha do Araguaia é um tabu entre os militares. Os poucos que comentam o assunto – diz um deles – o fazem baixinho. No início dos anos 70 – quando o foco guerrilheiro foi descoberto pelas Forças Armadas e começou o trabalho de repressão – a imprensa estava sob censura e não pôde noticiar o confronto, salvo uma única reportagem, em 1972, do jornal O Estado de S. Paulo.
“Operação Araguaia” é uma espécie de quebra-cabeça rigorosamente montado. A partir dos fatos revelados nos documentos oficiais – a maior parte deles assinados por generais e oficiais, que no futuro se tornaram conhecidos na ditadura militar – os autores remontaram a história. Consideram também as revelações contidas em outras obras e investigações do passado. Os dois anos de coleta de entrevistas e depoimentos com os sobreviventes e parentes, civis e militares, fizeram com que as peças se encaixassem e a história pudesse ser contada de forma mais completa.
O livro começa nos anos 60, com os primeiros sinais da instalação de esquerdistas na Amazônia, registra a passagem de militantes do PCdoB pela China, reconstitui o cenário da época e relembra o Brasil de conflitos internos desde a tentativa de se criar uma espécie de república na região de Trombas e Formoso, no Bico do Papagaio, região entre Tocantins, Maranhão e Pará.
Os documentos secretos revelados agora pelo livro de Taís Morais e Eumano Silva mostram que, derrotada a guerrilha em 1974 e desestruturado o PCdoB, em 1976, ainda em 1985 os militares insistiam em identificar o partido como uma organização perigosa. Informações similares circularam pelo governo até 1992, governo Collor, data do último documento militar obtido por Taís Morais.
Os documentos são assinados por oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, pelos serviços de informações das três armas, principalmente pelo Centro de Informação do Exercíto - CIE, Polícia Federal, Serviço Nacional de Informação – SNI e pelos gabinetes dos ministros militares. A maioria tem os carimbos de Confidencial, Reservado e Secreto, dependendo do teor. Alguns não têm carimbo algum, mas têm assinatura. Várias das fotografias são originais coloridas. Muitos dos documentos possuem anotações escritas à mão.
– O maior mistério das Forças Armadas já não é segredo – conclui o editor da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato. – Cabe ao governo exigir que o restante dos documentos, se existirem, seja colocado à disposição da sociedade, e que possam ser identificados os restos mortais dos combatentes já resgatados em Xambioá, para lhes dar sepultura digna.
O resto é história, contada agora da forma como convém: por aqueles que têm como único compromisso a verdade – seja ela qual for.
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