sexta-feira, 30 de maio de 2008

Reportagem da Veja - João Gabriel de Lima


Vietnã na Amazônia

Operação Araguaia é o primeiro livro sobre
a guerrilha brasileira baseado em relatórios
militares. Ele mostra um combate ainda mais
violento do que se supunha

A guerrilha do Araguaia é um episódio militarmente pífio mas que adquiriu uma aura mítica na história recente do Brasil. A esquerda radical costuma citá-la como exemplo de heroísmo, em que militantes lutaram até o último homem, tendo o Exército sumido com os corpos de todos os que morreram em combate. Os militares, por seu turno, se orgulham de ter evitado a proliferação de grupos terroristas como os que durante tanto tempo infernizaram a vida de outras nações sul-americanas. Os livros publicados sobre o assunto em geral ficam no tom panfletário, em que os episódios são contados ao sabor da ideologia do autor. Não existe um relato oficial da supressão da guerrilha no Araguaia. Sucessivos governos vêm renovando o sigilo sobre os arquivos do período.

Operação Araguaia – Arquivos Secretos da Guerrilha (Geração Editorial; 636 páginas; 59 reais), escrito pelos jornalistas Eumano Silva e Taís Morais, é a primeira obra sobre o assunto calcada primordialmente em documentos. O livro é valioso. Ele se baseia em 1.167 páginas de relatórios militares coligidos por Taís, filha de um oficial do Exército, que se valeu de relações familiares para ter acesso aos papéis secretos, com o compromisso de preservar a identidade dos que os forneceram. Os autores complementaram o trabalho entrevistando vários dos envolvidos. Alguns poucos documentos incluídos no livro já haviam sido publicados no jornal Correio Braziliense, para o qual Eumano trabalha, mas a maioria é rigorosamente inédita e está sendo exibida em primeira mão nesta reportagem de VEJA. Em duas semanas, a íntegra dos relatórios e documentos feitos pelos militares brasileiros que combateram os guerrilheiros estará disponível na internet no site da editora (www.geracaobooks.com.br).

O livro questiona mitos, confirma suspeitas, mas, sobretudo, mostra que a luta foi mais encarniçada do que até hoje se supunha. Na virada dos anos 60 para os 70, parte da esquerda brasileira pegou em armas contra a ditadura militar. Mas só o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, conseguiu estabelecer, de forma consistente, aquilo com que todos os grupos armados sonhavam: um movimento guerrilheiro no meio da selva. Desde seu nascimento, em 1962, quando o Brasil ainda era uma democracia, o PCdoB já planejava fazer uma revolução partindo do campo, com o intuito de instalar uma ditadura comunista no Brasil. Sobre os planos do PCdoB há farta documentação publicada anteriormente. De inédito, Operação Araguaia traz relatórios militares redigidos com base em textos oficiais do partido. Neles, o PCdoB fala das razões de ter escolhido a região do Araguaia para a operação, "adversa ao inimigo, criando imensas dificuldades à sua atividade militar", e com um terreno "que possui condições ideais para a utilização da tática de guerrilhas". Deixa clara a intenção de criar uma "zona liberada" e a organização de um "exército regular". Cita como modelos os movimentos guerrilheiros do Vietnã, da Malásia e de Angola. Parte dos guerrilheiros do partido foi treinada na China.

Em 1972 o PCdoB já havia assentado cerca de cinqüenta homens na região conhecida como Bico do Papagaio, na fronteira tríplice entre os estados do Maranhão, Pará e Tocantins. A movimentação dos guerrilheiros comunistas foi monitorada desde o início, mas o Exército, no princípio, não distinguia os militantes do PCdoB – que estavam lá desde 1966 e eram treinados em operações na floresta – dos integrantes esparsos de outras facções urbanas que haviam apenas se escondido na região sem um plano definido. A real intenção, o grau de preparo e o poder de fogo da guerrilha do PCdoB só ficaram mais claros para o Exército com um lento trabalho de espionagem e a colaboração de alguns guerrilheiros desertores.

Um documento inédito incluído no livro reforça uma das teses a respeito do assunto: a de que o Exército veio a saber da presença e da liderança do PCdoB na selva brasileira pela boca do guerrilheiro Pedro Albuquerque Neto. Casado com Tereza Cristina, também militante do partido, ele resolveu desertar quando a mulher ficou grávida – e o partido sugeriu a ela que fizesse um aborto. Os dois fugiram do acampamento em junho de 1971, levando parte do dinheiro da organização. Foram para Fortaleza. Pedro ficou lá, enquanto Tereza seguiu para a casa de parentes no Recife. O militante acabou preso em fevereiro de 1972. Torturado, revelou a existência de um movimento guerrilheiro organizado pelo PCdoB. Um resumo de seu depoimento foi enviado aos militares responsáveis pela Operação Cigana. Outro documento inédito faz referência à Operação Peixe, a primeira desencadeada contra a guerrilha. Achava-se que o Exército tinha iniciado suas diligências no Araguaia em meados de abril. A obra mostra que na verdade já havia soldados na região desde o fim de março. Esse é mais um indício de que o depoimento de Pedro desencadeou a operação.

No livro A Grande Mentira, de 2001, no qual o general do Exército Agnaldo Del Nero Augusto reconta a história do ponto de vista dos militares, aparece outro nome como o responsável por fornecer, posteriormente, informações detalhadas sobre a guerrilha: o de Geraldo, codinome do atual presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoíno. Escreveu o militar: "A prisão mais importante, ocorrida em 18 de abril (de 1972), foi a de Geraldo, que revelou a estrutura do PCdoB na área, fornecendo, também, a localização geral dos três destacamentos em que o partido estava organizado, bem como a constituição do seu próprio, que era o destacamento B". Operação Araguaia reproduz em livro pela primeira vez a íntegra dos depoimentos de Genoíno, nos quais o atual presidente do PT – que havia sido barbaramente torturado – realmente dá nomes de colegas, além de fornecer informações sobre a estrutura dos destacamentos, seus comandos e as armas que possuíam. "O que eu fiz não prejudicou ninguém. Meus companheiros tinham ordens para abandonar os locais onde estavam caso eu fosse preso, e isso efetivamente aconteceu", disse Genoíno a VEJA.

O episódio é polêmico por envolver Genoíno, um dos cardeais do PT e um de seus líderes mais sensatos e de inequívoca vocação democrática. O livro Operação Araguaia entra em contradição no que se refere ao papel de Genoíno. No capítulo em que a história é contada, está escrito que Genoíno deu apenas codinomes. Nos depoimentos publicados nos anexos, no entanto, lêem-se vários nomes reais com os respectivos sobrenomes, entre eles os de João Amazonas e Maurício Grabois, principais dirigentes do PCdoB, que chefiaram as operações num primeiro momento. "Todos sabiam os nomes de Amazonas e Grabois, e os nossos também eram conhecidos na região, uma vez que muitos guerrilheiros haviam comprado propriedades usando a carteira de identidade verdadeira", esclarece Genoíno. A verdade é que não existe nenhum documento que comprove que algum integrante da guerrilha tenha sido preso em decorrência de informações obtidas pelos militares dos depoimentos de Genoíno.


O Exército fez três campanhas no Araguaia. Nas duas primeiras, os melhores resultados foram obtidos na área de inteligência. Apenas na terceira ofensiva, iniciada no fim de 1973 com o uso intensivo de pára-quedistas e outras tropas de elite, conseguiu exterminar o inimigo. Foi uma operação de guerra que visava a matar os insurgentes. Fazer prisioneiros não era prioridade. Os corpos de 59 militantes do PCdoB estão desaparecidos até hoje. Um dos documentos mais impressionantes contidos no livro é o relatório da Operação Marajoara, realizada na terceira campanha, que traz duas revelações. A primeira é o relato de integrantes do PCdoB que se entregaram e, mesmo tendo se rendido, não mais apareceram vivos ou mortos. O relato da Operação Marajoara deixa claro que houve execuções ou mortes acidentais de guerrilheiros submetidos a interrogatório. Sobre isso não há muita novidade. Diversos depoimentos reproduzidos em outras obras dão conta dessa brutal faceta da guerra no Araguaia. O livro Operação Araguaia, no entanto, fornece uma prova documental.

Outro trecho interessante do relatório, que é de junho de 1974, é o que faz o balanço oficial do estado dos militantes da guerrilha naquele momento. Os depósitos de alimentos e medicamentos haviam sido destruídos, grande parte das armas tinha sido confiscada, vários dos militantes estavam doentes e parte deles começava a desertar. Ou seja, a guerrilha estava exangue. Mais adiante, no mesmo documento, os militares do Exército envolvidos na operação expressam sua disposição de persistir até a "eliminação total das forças guerrilheiras". Eles adiantam que "uma interrupção da Operação Marajoara, antes da destruição total do inimigo, poderá possibilitar seu ressurgimento, ainda com maior vigor e experiência". Do ponto de vista estritamente estratégico, não se pode discordar da análise dos militares. As guerrilhas comunistas em outros pontos da América Latina ressurgiram quando parecia que haviam sido totalmente desbaratadas. Não se pode esperar, também, que enfrentando guerrilheiros do Terceiro Mundo o Exército brasileiro pudesse agir como uma instituição militar do Primeiro Mundo. Mas tais circunstâncias incontornáveis não justificam a decisão de matar todos os inimigos e não fazer prisioneiros, como parece ter sido a determinação na terceira e decisiva fase do combate à insurgência comunista no Araguaia. O inglês John Keegan, um dos maiores historiadores militares da atualidade, diz em seu relato espetacular dos choques armados A History of Warfare (Uma História da Guerra) que nesses casos são comuns as hostilidades, mas "são também sempre uma afronta à honra militar".

Não existem provas de que houve uma decisão oficial do Exército de eliminar fisicamente todos os guerrilheiros. Sabe-se, de forma indireta, que houve desacordo interno sobre a questão. Vários militares que se pronunciaram recentemente sobre o assunto condenaram a solução radical e, de acordo com a autora Taís Morais, muitos dos que foram ouvidos por ela também repudiaram o desfecho. "Era uma decisão polêmica na corporação, e até hoje não se sabe exatamente de onde partiu a ordem", diz Taís. O relatório da Operação Marajoara incluído no livro leva o carimbo do Ministério do Exército. No livro A Ditadura Derrotada, o jornalista Elio Gaspari, ex-diretor adjunto de VEJA, reproduz uma frase do general Ernesto Geisel, em conversa sobre subversão com o general Dale Coutinho, em que ele diz: "Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser". Um trecho de conversa entre generais é evidência insuficiente de que havia ordens superiores para eliminar os guerrilheiros, mesmo os que se rendessem. Evidência maior pode ser o fato de, até onde se sabe, nenhum militar ter sido punido por seus excessos no combate à guerrilha.

As famílias dos militantes do PCdoB que morreram no Araguaia foram indenizadas pelo Estado brasileiro. Um documento inédito revelado pelo novo livro é um relatório produzido pelo Ministério do Exército, datado de 1985, com uma lista de baixas do Exército durante a guerrilha. O levantamento contabiliza sete mortos e oito feridos. Os autores acreditam que houve mais baixas. Nem todas as famílias de militares foram indenizadas, pois a algumas se omitiu o fato de que seus parentes estavam em combate contra a guerrilha. Entre as cinco ouvidas pelos autores do livro, apenas duas haviam recebido indenização – uma terceira recorreu à Justiça civil e duas simplesmente não ganharam nada.

A primeira morte de militar, a do cabo Odílio da Cruz Rosa, é descrita em detalhes no livro, reconstituída por meio de entrevista com o tenente Nélio da Mata Rezende, que presenciou a cena. Odílio foi abatido com um tiro de espingarda na virilha, disparado provavelmente por Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um dos líderes da guerrilha. Os dois militares estavam no meio da floresta, a léguas do posto de saúde mais próximo, de forma que Odílio sangrou até morrer e seu corpo só foi resgatado dias mais tarde. O próprio Osvaldão seria morto por um tiro de espingarda, dois anos depois, disparado por Arlindo Piauí, um mateiro que servia de guia para os militares. Também sangrou até morrer. Seu corpo foi exibido pelo Exército em vários povoados da região para servir de exemplo. Os dois episódios servem para ilustrar a violência que reinou no Bico do Papagaio entre 1972 e 1974. Além de se embasar em farta documentação, Operação Araguaia tem o mérito do equilíbrio, prendendo-se aos fatos e evitando o tom panfletário. O defeito do livro é a ausência de notas de rodapé e de uma melhor contextualização dos documentos. Em busca de uma narrativa fluente, os autores preferiram dar ênfase à descrição das manobras militares e ao perfil dos personagens. O Brasil que emerge de Operação Araguaia é um país radicalizado cujos habitantes se matavam uns aos outros como se fossem talibãs. Esse país, felizmente, pertence ao passado.

COMUNISTAS TREINADOS NA CHINA

Entre as organizações de esquerda que participaram da luta armada, apenas o Partido Comunista do Brasil tinha capacidade militar para combater na selva. Alguns de seus integrantes haviam sido treinados na China. No trecho acima, explica-se que a escolha da selva para operações guerrilheiras havia dado bons resultados no Vietnã, na Malásia e em Angola


MILITANTE TORTURADO DENUNCIA O PCdoB

O guerrilheiro Pedro Albuquerque Neto desertou do Araguaia quando sua mulher, Tereza Cristina, ficou grávida e o PCdoB recomendou que ela fizesse um aborto. Os dois fugiram com parte do dinheiro da agremiação. Pedro foi preso em Fortaleza e revelou a existência do movimento organizado. O documento acima, da chamada Operação Cigana, mostra que o combate começou logo após o seu depoimento

ELIMINAÇÃO TOTAL DOS GUERRILHEIROS

Um relatório da Operação Marajoara, de 1974, uma das últimas de combate ao PCdoB, constatava que a guerrilha estava exangue. Mesmo assim, a decisão do Exército era persistir até a "eliminação total das forças guerrilheiras", conforme trecho acima. Não se sabe até hoje de quem partiu a ordem, polêmica mesmo dentro do Exército, que culminou na morte dos militantes e no sumiço de seus corpos


MILITARES MORTOS EM COMBATE

Até pouco tempo atrás não se sabia quantos militares haviam morrido na luta com a guerrilha. Um levantamento feito em 1985 contabiliza sete mortos e oito feridos. Os autores de Operação Araguaia contataram cinco famílias de militares que perderam parentes na operação. Dessas, apenas duas haviam recebido algum tipo de indenização do governo

O atual presidente do PT já recebeu acusações, à direita e à esquerda, de ter entregue companheiros do PCdoB. Operação Araguaia traz cópias de seus depoimentos à ditadura. Barbaramente torturado, Genoíno realmente deu nomes de militantes e revelou detalhes das operações. Ele alega que o que revelou não prejudicou ninguém, pois os guerrilheiros tinham ordem de se esconder caso um deles fosse preso. O fato é que não existe prova de que o Exército tenha prendido alguém baseado nas declarações do atual presidente petista.








Nenhum comentário: